Por Matias Monteiro
Janaína Miranda parece intuir uma cumplicidade entre o equilíbrio precário do conjunto de fenômenos que denomina paisagem e o poder de instabilidade do registro fotográfico. O hiato que a fotografia sugere entre a torrente contínua de eventos (diacronia) apenas instaura-a no sistema contíguo de imagens (heterocronia). Assim, nas séries fotográficas da artista as estratégias de display (margens, posicionamentos, dimensões) produzem um sistema interno tão significativo quanto as próprias imagens. E, aqui, talvez, evidencie-se uma das qualidades mais instigantes de sua produção: suas fotografias não são meramente registros de paisagens, mas são, elas mesmas, em sua mise-en-scène, paisagens.
Devemos, portanto, concluir que a paisagem à qual nos referimos jamais será compreendida como uma emergência naturante do mundo, mas, antes, como um valor semântico ou um conjunto de enunciados culturais. As paisagens de Janaína são essencialmente desnaturadas, e, sua fatura é organizada segundo uma estrutura formal: suas fotografias são predominantemente ortogonais, com uma predileção pela perspectiva frontal (de um ponto), qualidade reforçada pela disposição em gride. Raras são suas paisagens obliquas ou diagonais; suas imagens não resultam de vislumbres, relances, espiadelas ou olhares periféricos. Antes, elas confrontam o sujeito, reivindicando seu olhar como uma aparição inescapável e, no entanto, mesmo sob esse registro direto e frontal, algo nelas resiste, permanece parcialmente ininteligível (dimensão enfatizada por suas montagens lacunares, nas quais há sempre projeções de potenciais fotografias ausentes).
A paisagem nos assedia como um fenômeno insondável, não por força de um mistério transcendental, mas por sua potência essencialmente imagética. Renata Azambuja aponta essa qualidade nas propostas da artista, aludindo a um avesso ou abismo que comparecem em suas imagens como ação de um inominável (talvez o equivalente, no registro da enunciação, àquela dimensão escópica que Karina Dias se refere como invisão).
Na obra de Janaína, há uma recorrente alusão a acontecimentos ocorridos no extracampo, cujos efeitos acessamos apenas como vestígios ou resquícios. Em Paisagem da espera, o veículo imóvel e encoberto converte-se em uma espécie de monumento involuntário (votado, segundo a artista, ao desejo de invisibilidade e resistência ao ambiente); na série Outramentos, a aparente imobilidade vegetal é subvertida pela constatação do tropismo e, em Imaginário do habitar, a obsolescência úmida de uma clareira é resultado da queda de uma árvore… assim, a artista trabalha com a noção de tropos cronológicos (“um lugar virou um tempo”), e o ofício do fotógrafo revela-se análogo aquele do arqueólogo.
Na obra Proposição para invenção de paisagens [2015], o suporte fotográfico dá lugar a tickets impressos em papel termossensível, coletados mediante um conjunto de diretrizes e ordenados sob um sistema subjetivo de associações:
1- Vá ao hipódromo mais próximo.
2- Aposte em todos os cavalos com nomes de elementos que remetam à paisagem.
3- Guarde os tickets.
4- Construa Invente sua própria paisagem.
A rasura denuncia a ambivalência do processo: a arbitrariedade da seleção dos nomes e organização do material obtido tenciona um sistema formal (construtivo) em um processo de fabulação ou ficção (invenção). O suporte fotossensível (e, portanto, sujeito ao apagamento) constitui rastro de um gesto; sua própria dimensão comprobatória (valor documental) é subvertida por sua qualidade ficcional (as apostas são, simultaneamente, atribuídas a cidades distintas). O resultado é um arquivo em paisagem: meio caminho entre as constelações mallarmenianas e a ratificação da sequencialidade muybridgeana.
A paisagem, como a fotografia, é concomitantemente elaborada (construída) e forjada (inventada); engendra-se na qualidade imprecisa entre estes registros. Assim, Janaína enfatiza essa confluência por meio de um sistema supostamente afastado dos suportes tradicionais da fotografia, apenas para desvelá-lo como fotográfico.
A nomeação faz tormenta; o conjunto de comprovantes constituem a evidência de uma ação (ir ao hipódromo/apostar), sistematizados por um método (seleção dos cavalos por associação e analogia) em um display (que recebe o mesmo tratamento de suas fotografias); ortogonal, lacunar, emoldurado…). Revela-se, assim, um exercício cartográfico: Ilha de Páscoa permanece isolado, tal como Atlas (sustentando um firmamento composto por alusões estelares e celestes) … há ainda espaço para referências a artistas (como no caso da curiosa concorrente nomeada de Jenny Holzer ou da aproximação conveniente de Desert dream e El Huracan, alusão a obra Tornado, Milpa Alta de Francis Alÿs). Estes incidentes de nomeação, alinhados por afinidades semânticas, combinam-se com a própria obsolescência deste jogo (a hípica, o jóquei clube e a aposta em cavalos parecem pertencer a uma dimensão de jogatina arcaica), produzindo laço e desvelando as qualidades poéticas do inventário.
Somos repentinamente remetidos ao célebre Aithôn, cavalo cujo cavaleiro variava imensamente na tradição mitológica grega; ora o corcel negro de Hades, ora a montaria de Pallas, ora o varão de Helius… em todo caso, sua qualidade expressava-se por seu nome (reluzente, brilhante, resplendoroso). O equino, convertido em feixe de sol, obscuridade ou epifania; produtor de paisagens mediante a associação que se lhe sugere.
A competição tornada constelação; palavras gravitando em torno de sentidos provisórios: esta é uma topografia que desejo explorar…
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Matias Monteiro atua como artista, curador, professor doutor e desenvolve atividades junto a programas educativos em museus e centros culturais.